terça-feira, 1 de agosto de 2017

Tinha esse amigo que servia táxi na praça em frente a rodoviária. Ele tinha esse hábito condenável de passar as noites dentro do carro, com os vidros abertos, ouvindo o rádio, não importando as notícias. Não me parecia ser judeu ou comunista. Tampouco havia me dito qualquer burrice no decorrer de nossa amizade. E, veja, isto é incrível. Durante os mais de dez anos em que convivemos, jamais ouvi de sua boca uma asneira, um balbucio torto, uma história aumentada. Nada.
De verdade, lembrei agora, ele batia o ponto em torno de onze da noite e ia para casa lá pela uma da tarde do dia seguinte. Exceto aos sábados. E isso eu não sei o porquê.
Então desde o sempre eu e o pessoal da redondeza, sempre que podíamos, falávamos: Veja lá, Eleutério, não é seguro ficar à noite dentro do carro. Ele desdenhava. Dizia que alguma coisa dentro de si lhe dava certeza, todos os dias, de que nada lhe aconteceria. E mais não podíamos dizer, pois em alguns bons anos de trabalho nada, efetivamente, nada de mal lhe aconteceu. Nem uma gripe, uma dor na coluna, uma trompadinha com o dedo do pé. De maneira que nosso alerta era esse que se dava apenas para livrar-nos de um mal com nossas próprias consciências, de depois não virem dizer que não avisei.
O problema foi que numa dessas manhãs, já quase na hora de ir pra casa, ele passou na padaria e pediu um café, sem dar bom dia. Não era o hábito. Pelo contrário. Eleutério, mesmo não sendo de muitas palavras, sempre foi muito educado, prestativo, nunca pediu fiado. Quando podia, pagava um sanduíche ou um copo de leite a um menino que pedia esmolas, e já o vi trazer algumas roupas e deixar embaixo das árvores que serviam de casa para os menos favorecidos.

Mas nesse dia, em especial, Eleutério estava cabisbaixo. Eu e os outros achamos estranho. Pouco a pouco o seu silêncio foi tomando conta de nossas conversas até que todos silenciaram também. Então, do outro lado do balcão, o Galdino, eu acho, perguntou pra ele se estava tudo bem. Respondeu que sim, estava, mas tinha certeza que na próxima noite ia morrer.
- É, eu não sei como nem porque, mas acho que da próxima noite eu não passo - disse ele, em tom meio certeiro e triste. O pessoal riu, fez galhofa. Ele arriscou um sorriso de canto de boca que se não fosse a mudança vertiginosa do imenso bigode para um ângulo perpendicular, ninguém além de mim teria notado. Enquanto o Elesbão pedia um cigarro e uma parte da herança, Eleutério pagou o café e saiu.
Eu confesso que ri também. Todos riram. Mas considerando o Eleutério ser o Eleutério eu fiquei com isso na cabeça, sabe? O senhor entende? Eu não pensei que Eleutério realmente iria morrer, veja. Ele poderia só estar triste, sei lá.

Então na noite seguinte eu cheguei e antes de qualquer coisa fui falar com o Eleutério. Rodei duas vezes a praça e não lhe achei. Liguei para o telefone dele e atendeu uma senhora, muito cretina, que dizia não conhecer nenhum Eleutério. Conferi o número, liguei de novo e a senhora me botou os cachorros. Liguei para a Central e a Firmina disse que ele não havia dado entrada no sistema. Pedi para chamar pelo rádio, mas ela disse que ele não estava respondendo. Deixei por isso mesmo.
Na segunda noite, a mesma coisa. Não apareceu no ponto a noite toda. Alguém disse que o viu no mercado, outros disseram que ele fez uma fezinha na loteria, talvez esteja fora da cidade atendendo um cliente. E por isso ficou. Já na terceira noite, o pessoal começou a estranhar. A senhora que atendia o telefone dele parou de receber as nossas ligações e muito provavelmente bloqueou a linha, ou transferiu, ou sei lá. Alguém disse que morava perto da casa dele e que passaria lá antes de ir embora. Assim ficamos. Na quarta noite, disseram que na casa onde Eleutério morava já não havia gente há anos. Lá hoje funciona uma barbearia e ninguém se lembra do Eleutério. Alguém ligou pra Polícia e eles disseram que poderiam registar o Boletim de Ocorrência, mas era melhor ver com a seguradora do carro antes se havia rastreador. Ligamos, demos a placa, mas o pessoal de lá não acreditou. Disse que não podia dar informação a terceiros. Justo. Voltamos na delegacia e o civil não quis registrar a ocorrência pois não éramos da família e, ainda se fôssemos, casos como este não eram prioridade em tempos de greve.
Concluo a história pro senhor dizendo apenas que talvez Eleutério tenha morrido, sim. Mas claro que é muito mais provável que tenha cansado de tudo e tenha sumido, voltado pro Rio Grande do Norte. Tenha sofrido um acidente e esteja internado, enfim. Essas coisas que acontecem. De modo que ao fim e ao cabo, as pessoas somem, desaparecem, mesmo estando vivas. E já não sei se viver é estar presente, ou se morrer é apenas mais uma ilusão coletiva.

terça-feira, 22 de maio de 2012

cup hearts

Penso que nessas peças e chaves não temi coração. Explico: nessas peças que o destino, o qual não acredito, nessas peças que o destino me pregou, entre nós, como portas sem chaves, nunca temi o que me quis dizer o coração.
Não temi por que desde o sempre o sabia. Desde o sempre lhe ouvia e tinha certezas.

Mas veja que estes dias sorri por que lembrei que sempre soube: homens bons sabem cozinhar. Isto quer dizer, eu e você sabemos que as pessoas boas sabem cozinhar.
Antes de tudo, por que é de paciências e é de carinhos. É de intimidade com as coisas, frutas, águas e vinhos. Sal e açúcar. Um pouquinho de cada que faz o tudo - como um amor novo que antes era paixão. Translúcidos beijos como ingredientes, paciências e carinho fermentando. E o espasmo febril de um beijo apaixonado como o cheiro de um bolo quente serpenteando por aí.

Quis te dizer de tudo isso, por que sei que hoje estás em boas mãos. Se teu amor hoje te dá o de comer com as próprias mãos é por ser homem de bem - e fico feliz que o seja, por que mereces. Por que és simplesmente linda, leve e perfeita.

Se não estamos juntos - e se não ficaremos - é por que talvez tenha faltado um ou outro ingrediente, mesmo que tenha sobrado, exageradamente, amor.

sábado, 19 de maio de 2012

Não seguiam carreira


Era ele menino sentado no chão do quarto quando ouviu o som das patas dos cavalos. Eram eles senhores e vinham de-adiante, de-bem-depois, de umas setenta braças além do milharal. Era verão.
Correu mesmo descalço pelo chão da casa, de um taboão velho e carcomido, engordurado de cera. Serviam as três horas da tarde de um sábado.



A casa urrava. Urrava de tão vazia. Menino debruçou-se tímido na guarda da janela e esperou os senhores chegarem. Senhores que eram, e tinham armas.
Foram diminuindo o passo à medida que chegavam a casa, e foi dali que menino viu, sem dúvida, tratar-se de uns quantos homens - mais do que imaginara de início.
Os quatro primeiros vinham em fila, os de trás não seguiam carreira.



Menino fechou rápido a janela, e se fazendo valer de uma tranca de pau, atravessou cadeado nas toras, passando corrente nas guardas. Suava frio. Voltou ao quarto correndo e, trancando a porta, escondeu-se embaixo da cama. Fervia. Enquanto isso o assoalho trincava e estalava sozinho - essas coisas de madeiras e ventos. Menino, então, esperou darem as horas.


Capitanearam a casa e o cocho. Cercaram árvores e quintal. Banharam-se da sombra madrinha de uma mangueira. Mas dali não se ouviu voz nem assovio. Nem grito e nem canção. A casa ali, como se desse companhia.


Dali, nem à dois metros pra dentro se puseram - era como a proibição velada de uma lei falsa. Não houve quem cogitasse adentrar. Antes de tudo, e ao final de nada, era sinal de respeito. Daquelas coisas, tipo verdades. Verdades que nunca precisaram ser ditas - já se nascia sabendo.


Quietude infante dentro da casa, suava frio e sentia contorcer a barriga. Enrijecia os tornozelos, os punhos e as mãos. No que triscasse, quebravam. Era de um silêncio ivejável.


Menino não nos pôde contar com certeza, anos depois, o que acontecera. Imaginou o que agora lhes conto. Por que a uma se passaram as coisas pelo lado de fora; e, a duas, de tudo o que se passou só lhe chegaram os sons.


Dizem que um dos senhores que vinha pelas frentes, um dos 4 em fila, apagando um cigarro levantou da sombra e foi na direção da casa. Sob o olhar condenante dos demais, tapeou o chapéu pra cima e bateu quatro palmas sem pressa, dizendo em direção à porta um Oh, de casa!


E foi esta mesma boca de um singelo Oh, de casa!, a que sentiu o primeiro tiro rasgar-lhe os bigodes, rachando de cinco a seis dentes, vindo o tiro a sair pela bochecha. Este tiro, o primeiro, correra do milharal, de onde uns quantos em dobro dos demais dali já se levantavam e faziam despejar sobre os cavalarianos uma chuva de tiros. Não houve reação. Do primeiro ao último instante não piscariam mais de cinco vezes.


Então saí debaixo da cama, abri a porta do quarto, corri para a janela e fiquei esperando um sinal. No que mandaram, abri as portas e janelas, escancarei tudo sem medo, sem dó, com pressa. Tinha sede e calor. Olhei ao monte de corpos espalhados no chão, enchi os pulmões de ar e voltei ao quarto ler e explicar as histórias de Macondo aos meus soldadinhos de chumbo.



terça-feira, 15 de maio de 2012

Labirinto

Fui e tive de ir buscar em mim mesmo o sentido de coisa. O sentido de conceitos.

Senti e quis querer trazer de volta um café da manhã servido em forma de alumínio, amassada, coberta com um pano de prato bem velhinho. E fazia chá, café e bolo. Suco não tinha. Dinheiro.
Domingos.
E era só para vê-la sorrir. Não era de esperar outras coisas.

Não havia, ainda, as gavetas. Não havia, ainda, os surtos, as verdades, as delícias de se conhecer a tristeza e o trauma profundos. Tudo fazia sentido. Deliciosamente, fazia sentido.

A vida era o resumo do cheiro doce das árvores da primavera ao descer do ônibus e encantar-se. De passar horas no banho e, ao mesmo tempo, ver as meninas correndo pela rua.

Mas vieram as calamidades, a vida silente, as dores de agosto. Vieram as fraquezas e as expiações, puseram para fora todas as dores guardadas no peito por anos. A dor do abandono.

Enfim, nos perdemos.

Triste, hoje não lhe acho, mesmo sentindo seu sangue na minha veia.




quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Eu queria saber que energia é essa energia toda que me falta quando chego em ver você.
Fico sem jeitos.
Sugiro imaginar tratar-se de um amorcarinho que se impõe como uma almofada num sofá. Penso ser um senão entre tantos poréns e nem assim acho um entretanto pra te decifrar.
Está constatado, contudo, que entrementes e entre dias explodirei. Fato consumado antes de acontecer.
Se eu explodir vai ser pra dizer o quanto te quero. Dizer o quanto te imagino e o quanto te penso. O quando comecei a te beijar sozinho em sonhos. 
Entrou esse querer nesse quarto e não foi há pouco.

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Amenidades

São agora respeitáveis altas horas da noite e me espanto. Me espanto com a espetacularidade das amenidades.

Que genial é o dançar da poeira das mãos que se batem, lançando partículas que se vão ao céu e por fim ao espaço sideral. Que espetáculo reproduzem estes átomos no ar estelar, e brilham pela luz do sol, ao outro lado do planeta que talvez já será dia.

Espanto com o tilintar das patas da formiga que trabalhará amanhã, neste seco chão do cerrado seco.
E considero, ainda, a gotícula d'água que faz esta mesma formiga sorrir, se lhe cruzar os caminhos cheios de grama. É todo um espasmo em despaçar tudo o que contém algo.

São beija-flores na nossa próxima estada.
E virão atrás de doces e caramelos, tudo em flores, e só descansarão se lamberem os lábios, ah, que doce era essa bromélia acácia amêndoa cruz dor verão.
O beija-flor permeia e muda as cores e semeia, mesmo sem querer, novas flores. E até o pólen muda o colorido amarelo-doce que lhe é intrinseco. A árvore seca e resseca, versa e traduz as estações todas, como se pintasse-as em fotos de dentro pra fora.
Mas ninguém muda o azul do céu. Ninguém nem nada. Não é?

E num gabinete de um escritório repartição forum, um senhor de terno e gravata empreende a manufaturar uma recorte qualquer numa folha branca, sem nada escrito.

O senhor sorri e pode-se ver que, atrás dos bigodes, lhe restam bons dentes brancos. Despreocupa com as verbas ou com as notícias, recorta uma lua, cuidadosamente, com a tesoura antiga de metal.
Com a folha recortada nada mais lhe atribui a pensar resultados. Embola-a na palma da mão e lhe arremessa ao lixo do outro lado da sala, despreocupado em não ter corrigido o trajeto.

O mundo palpita e balbucia, mas nada preocupa a senhorita de saias a passar batom frente ao espelho.